As áreas urbanas brasileiras estão ficando mais feias, comparadas à 40 anos atrás. Os edifícios são caracterizados por uma grande falta de personalidade, e a sobreposição de estilos e tipologias fica cada vez mais esdrúxula. O fenômeno poderia ser explicado a partir da hipótese da perda de relevância do arquiteto como definidor do meio urbano, ou ainda pela decadência e a baixa capacitação da própria classe profissional. Numa análise preliminar, os arquitetos estariam se esquecendo que sua obrigação fundamental é dar ordem aos espaços que abrigam as atividades humanas, e não usar irresponsavelmente os recursos alheios como veículos de auto-expressão.
Esse fenômeno, porém, pode ter raízes um pouco mais complexas. Podemos estar vendo a “ponta do iceberg” de um processo mais amplo, um desdobramento natural da inserção da produção do meio urbano na lógica do capitalismo avançado. István Mészáros, em sua abrangente análise sobre o sistema capitalista global, identificou o fenômeno denominado “taxa de utilização decrescente”, ou seja, a diminuição gradual do “tempo de vida” de uma classe ou categoria de bens de consumo (duráveis ou não): “em sua tendência geral, o modo capitalista de produção é inimigo da durabilidade e, portanto, no decorrer de seu desdobramento histórico, deve minar de toda maneira possível as práticas produtivas orientadas-para-a-durabilidade, inclusive solapando deliberadamente a qualidade”.
Por durabilidade, ou a falta dela, entendemos a deterioração prematura de um produto de consumo. Porém, podemos ampliar o conceito para uma ‘durabilidade formal ou estilística’; nesse caso, relevante à arquitetura e à produção do espaço urbano. Conforme a citação de Gabbage, na mesma obra de Mészáros, “os artigos ficam velhos ou pela deterioração propriamente dita ou pelo desgaste de suas partes; por melhorias na maneira de construir; ou por modificações na forma e no estilo, exigidas pelo gosto variável da época”.
A “sociedade dos descartáveis” reverteu a lógica do aperfeiçoamento da produtividade, criando um equilíbrio entre produção e demanda baseado em um consumo-e-descarte artificial e de grande velocidade, de uma imensa quantidade de mercadorias, categorizadas até recentemente como bens relativamente duráveis. Podemos deduzir que, ao avançar em direção a um estágio mais ‘avançado’, o mercado imobiliário passa a introduzir técnicas de gestão, desenvolvimento e produção de imóveis que nada tem (ou tinham) a ver com o seu ramo de atividade. De maneira geral, é possível notar nas incorporadoras e construtoras uma forte orientação em direção ao marketing, como definidor das soluções arquitetônicas e estilísticas, em detrimento das soluções geradas a partir de conceitos típicos da arquitetura, como conforto térmico, significado cultural, qualidade de vida, entre outros. Em suma, trata-se a arquitetura e o urbanismo como um objeto de consumo, como um tênis, um carro, uma roupa ou um sanduíche do Mcdonald’s.
Também é notável a apropriação, por parte das empresas do setor imobiliário, de estratégias comerciais e de produção do setor varejista popular, que visam diminuir ao máximo o custo do empreendedor. Segundo o portal da revista Exame, uma importante empreendedora presente no mercado brasileiro, “construtora que prosperou nos últimos anos vendendo imóveis para consumidores de baixa renda (...), decidiu simplesmente copiar as duas companhias brasileiras que considerava modelo no mercado: a Casas Bahia e o Habib's. Da rede fundada por Samuel Klein, (...) apreendeu que vender para a base da pirâmide requer produtos honestos com prestações que caibam no bolso do consumidor, mesmo que o valor final fique muito acima do cobrado à vista. As parcelas dos imóveis não passam de 400 reais mensais, e o pagamento leva até dez anos. Do Habib's, rede de fast food de comida árabe, a empresa copia a padronização, uma forma de baixar custos. Todas as casas e os apartamentos seguem o mesmo projeto -- o que, apesar de tedioso, diminui em mais de 10% o gasto com engenheiros e arquitetos. Além disso, (...) fechou acordos com fornecedores para a produção de materiais sob medida, o que reduz o tempo da construção em até 50%. Com esse modelo de negócios copiado de companhias que nada têm a ver com seu ramo de atividade, fechou 2006 com vendas de 300 milhões de reais.
Não é difícil perceber a conexão entre a dominação do projeto arquitetônico pelo marketing das empresas, e as estratégias de produção de baixo custo descritas acima. Apesar de serem ações que buscam aparentemente fins distintos, elas parecem se encaixar em uma lógica de mercado que até pouco tempo atrás não fazia parte das empresas construtoras do ambiente urbano. A avaliação técnica e comparação das novas edificações com empreendimentos feitos em outras épocas, do ponto de vista técnico-construtivo, poderia nos levar à conclusão que a “durabilidade” do ambiente construído está diminuindo, o que confirmaria a teoria de Mészáros aplicada sobre o mercado imobiliário, na vertente mais tradicional do conceito de durabilidade. Obviamente, a comparação de vida útil de edifícios, do ponto de vista construtivo, é difícil de ser feita.
Uma terceira nuance do fenômeno pode ser identificada em respeito à “utilidade” do produto imobiliário em si. Nesse caso, é possível verificar uma ligação entre a especulação imobiliária e a taxa de utilização decrescente: grande parte dos lançamentos imobiliários são comercializados através de um “pré-lançamento”, onde um seleto grupo de “consumidores” - no sentido puramente comercial da palavra – é convidado para uma reunião fechada onde as unidades imobiliárias são ofertadas. Esse seleto grupo muitas vezes adquire todas as unidades, e as reserva na busca de uma valorização futura; outras vezes, somente as vêem como aplicações financeiras de baixo risco, especialmente em épocas de economia turbulenta. Assim, a “utilidade” do produto imobiliário, especialmente o residencial – moradia, abrigo - se coloca em segundo plano. Segundo Raquel Rolnik, em entrevista cedida à Manoel Lemes da Silva Neto em 26 de agosto de 2008: “Como nós, que temos no Brasil 6 milhões de casas e apartamentos vazios e 7 milhões de favelados!”. Essa constatação pode levar à conclusão que grande parte dos imóveis residenciais produzidos no Brasil recentemente não tem a finalidade de abrigar pessoas, mas de serem “consumidos” com outras finalidades, às vezes totalmente avessas à ocupação real. Sua utilidade se aplica, na melhor das hipóteses, marginalmente.
Obviamente é irrelevante, inútil e injusto julgar pessoas e incutir responsabilidades quanto ao desenvolvimento desse processo. Trata-se de um fenômeno econômico-social, onde as pessoas são apenas pequenas engrenagens de uma gigante máquina irracional chamada mercado imobiliário. Os diretores são funcionários, que muitas vezes são originários de outros setores do mercado, sem qualquer vínculo com o produto criado, e têm sua sobrevivência no cargo atrelada à metas e resultados. Não se trata de um complô de velhinhos malvados contra o bem-estar das cidades. Mas o fato é que a lógica da taxa de utilização decrescente, ao ser aplicada ao mercado imobiliário, gera produtos que seriam descartáveis, se não fossem eles os elementos construídos que compõem o ambiente urbano:
“como se pode tratar um edifício como objeto de consumo, adotando a última moda ou "tendência" e tratando sua organização e aparência de maneira leviana? Uma roupa de corte fora de moda pode ser descartada facilmente, um carro já é mais difícil, um edifício é impossível. O projeto arquitetônico que segue a moda pode até ser o sucesso de hoje, mas com mais certeza será o embaraço de amanhã, e o ridículo de depois de amanhã. Tratar a arquitetura como algo passível de ser consumido termina por tornar a própria disciplina obsoleta, enquanto seus produtos permanecem como monumentos à estupidez humana.” Mahfuz (2001, s/n).
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